LIVE SELF E GESTALT TERAPIA: CAMPO E TRANSGERACIONALIDADE

1. TEORIA DO SELF E TEORIA DE CAMPO por Hugo Elidio Rodrigues

 

1) Começamos com a importância de transmitirmos o conhecimento da Gestalt-terapia sempre em consonância com a própria metodologia gestáltica. Então como na Gestalt-terapia o sentido de uma figura só é captável na relação com o seu fundo referencial, é coerente sempre apresentarmos a Gestalt-terapia a partir do contexto referencial de quem apresenta.

2) Meu contexto: trabalho há aproximadamente 25 anos como Gestalt-terapeuta, e há uns 7 anos com uma formação em Constelação familiar na abordagem Gestáltica, e também sou professor formador em Gestalt-terapia formando Gestalt-terapeutas há 20 anos. Trarei uma visão sobre o campo a partir da minha experiência pessoal e clínica, juntamente com a base fenomenológica que foi um tema pelo qual eu sempre tive muito interesse.

3) A partir deste contexto, quero trazer aqui minha compreensão de como a Gestalt-terapia é uma abordagem  que tem como fundamento uma concepção dinâmica  do que é “campo”, uma vez que a compreensão de quem é o ser humano é algo que emerge em uma relação de resposta ao que ocorre na fronteira organismo/meio .

4) No livro “Isto é Gestalt” (uma compilação de artigos de vários autores), temos o capítulo do Gestalt terapeuta Marc Joslyn, intitulado “Figura/fundo: Gestalt/Zen” onde esse autor nos traz uma crítica  sobre lidarmos com a ideia de “campo” no sentido espacial, ou a partir de um recorte compreensivo “localizável” em um tema e, a partir disso,  falarmos em campo “profissional”, campo “das relações sexuais”, campo “financeiro” etc. Joslyn então nós trás o convite de pensarmos no campo (assim como o próprio Kurt Lewin nos falava) sob uma concepção temporal. Joselyn então compara “campo” à palavra “eternidade” e, de fato, não é possível concebermos uma “eternidade profissional”, uma “eternidade das relações sexuais” etc. O tempo é um só. O campo é um só. Nós vivemos o tempo, nós vivemos o campo. Tudo se dá no mesmo universo. Realidades diferentes acontecem no mesmo campo, no mesmo planeta, e um simples vírus que começou a adoecer pessoas em um canto do mundo, em um breve tempo, atingiu o mundo inteiro, independentemente de condição financeira, credo, localização geográfica, opinião política, gênero ou idade.

5) Caberia aqui um questionamento : mas trazer a uma concepção temporal não implicaria em trazer o passado,  não seria trazer a história, e correr o risco de  perder o foco metodológico da GT sobre o  “aqui-e-agora” que o cliente está trazendo para a terapia ?  Aqui é o ensejo para compreendermos a importância do campo , como uma contribuição de Kurt Lewin para a Psicologia em geral, e para a Gestalt-terapia em específico. Segundo Lewin, um comportamento de uma pessoa é necessariamente uma função da relação desta pessoa com o seu meio. Quando um cliente traz um introjeto, uma crença depreciativa dele mesmo, algo que a pessoa apresente sobre si mesma e que seja, porém, egodistônico, temos a oportunidade de trazer como tal comportamento se presentifica. Daí, a perspectiva temporal do campo não é uma ida ao passado ou uma fuga imaginativa ao futuro.  É a presentificação deste passado e deste futuro no campo vivencial desta pessoa, por exemplo,  em forma de expressões de tristeza constantes no rosto que a pessoa traz mesmo quando não esta triste,  assim como ela via a mãe dela fazer. Ou uma recorrência em dizer de si mesma “eu sou uma pessoa muito ruim”, como sempre ouviu a mesma frase proveniente do pai. Ou achar-se uma pessoa feia, pois sempre foi tratada assim, mesmo no presente tendo uma aparência da qual se agrada. Ou viver sempre preocupada com o que poderá acontecer no futuro, imaginando problemas que não se presentificam , assim como a avó fazia.

6) Na Gestalt-terapia, a teoria do Self apresenta uma aproximação muito grande com a perspectiva lewiniana. Pois, assim como em Lewin, o foco da GT é sobre os comportamentos apresentados, ou seja, é sobre a perspectiva dinâmica, em como uma resposta emerge na fronteira de contato organismo/ambiente. Esta resposta pode variar , tendo qualidades diferentes, ou como na Gt, temos “funções” diferenciadas que emergem nesta fronteira organismo/ambiente,  que pode variar desde uma resposta como algo incipiente, que provoca uma diferenciação da unidade organismo/meio e começa a voltar a energia, a atenção para o polo “organismo”, (chamada na Gt como função Id do self),  excitando o organismo para aprofundar essa diferenciação e passar a escolher no ambiente algo que precisa (função ego), e uma vez essa excitação sendo atendida, podendo registrar essa experiência como algo própria, uma história sobre si mesmo (função personalidade ).

7) Daí, como cada um responde às demandas emergentes na fronteira organismo/meio, se presentifica em função de como a pessoa  foi educada, pelos seus modos de criação, pelo seu  “jeito de ser” ser”,  configurando necessariamente um “fundo” para qualquer tipo de prática terapêutica. A palavra “fundo” aqui aplicada é segundo o conceito empregado na Psicologia da Gestalt.

8) Então, teoria de Campo e a teoria do self na Gt trazem é o reconhecimento de que todos nós forjamos uma personalidade a partir da relação “ser-no-mundo”  (conceito de Dasein, segundo Heidegger) ; mundo este que já existia previamente, e que estamos aqui considerando como fazendo parte do fundo presentificante referencial a partir do qual as figuras aparecem e fazem sentido, sempre em coerência com tal fundo (ninguém consegue ser outro ser além de si mesmo).

Espero que com essa base já possamos estimular o interesse de futuros Gestalt-terapeutas para ampliar estudos sobre esses temas.

Referências:

Heidegger, Martin, “Ser e Tempo”. Tradução Fausto Castilho. Campina: Unicamp. Petrópolis: Vozes, 2012.

Koffka, Kurt, “Princípios de Psicologia da Gestalt”. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1975.

Joslyn, Marc, “Figura/fundo:  Gestalt/Zen” in Stevens, John O. “Isto é Gestalt”. Tradução George Schlesinger e Maria Júlia Kovacs. São Paulo: Summus, 1977.

Lewin, Kurt, “Teoria de Campo em Ciência Social”. Tradução Carolina Martuscelli Bori. São Paulo: Pioneira, 1965.

Perls, F. Hefferline, R. Goodman, P. “Gestalt-terapia”. Tradução Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.

 

2. TEORIA DO SELF E TRANSGERACIONALIDADE  por Graça Gouvêa

A partir do que Hugo nos falou podemos entender como a noção de campo da Gestalt-terapia inclui a dimensão temporal. E perceber como nossa noção de self é uma noção de campo e temporal.

O self em suas funções ego, id e personalidade se constitui como um sistema de forças relacionais de contato organismo-ambiente, entendendo esse ambiente no seu aspecto espacial e temporal.

Quando observamos um processo de contato qualquer e percebemos, o fluxo e as interrupções nesse processo, podemos descrever didaticamente os níveis espaciais e temporais acontecendo simultaneamente: há um corpo físico/organismo num ambiente físico, que é simultaneamente uma experiência temporal, uma vivência para uma consciência.

Importante destacar que:  os eixos: espacial e temporal deste campo são indissociáveis, essa descrição é didática, para não cairmos aqui na falsa concepção sujeito-objeto/ mente-corpo. Do ponto de vista da consciência, há somente as vivências, ou seja, há o ser acontecendo na temporalidade.

Quando citamos Perls, Hefferline e Goodman  e Robine, enunciamos que “a neurose é a perda ou suspensão das funções de contato num campo onde há repressão”, trazemos aqui implícito a historicidade de um corpo/organismo interrompido em sua espontaneidade. A visão transgeracional amplia a compreensão deste processo.

A partir desta visão transgeracional quando observamos o campo organismo-ambiente, reconhecendo-se que neste campo organismo-ambiente, o organismo organiza o campo, mas também é organizado por ele - entendemos que essa organização se dá também em as duas direções passado e futuro.

O corpo/organismo tem uma historicidade e mesmo que uma pessoa tenha acabado de nascer, é a continuidade do campo histórico de outros, que vieram antes e lhe definem as condições em que nasce, e abrem perspectivas distintas de futuros.

A perspectiva transgeracional expande o olhar do terapeuta para incluir as diversas camadas geracionais do fundo familiar de seu paciente/cliente, e assim promover uma melhor compreensão da forma em que estes processos de contato, interrupção ou modulação de contato estão implicados nos modos de ser e pertencer a um campo familiar determinado. Reforçando a perspectiva da Gestalt-terapia como instrumentalização de uma psicologia social, uma vez que a pertença a um campo familiar inclui uma sociedade e uma cultura.

Trazendo agora um pouco do histórico da concepção de Transgeracionalidade:

A noção de Transgeracionalidade nasce na psicanálise, e em psicanálise pode ser definida como um campo de forças psíquicas inconscientes pertencentes a um grupo familiar que são transmitidas através das gerações pelo viés da negatividade, ou seja, transmite-se o que está oculto, escondido e não-elaborado (Kaës, 2001 apud Padilha & Barbieri, 2020).

Tendo como consequência um processo de transmissão alienante em que o indivíduo se torna ausente de si mesmo e sujeito à repetição, em um aprisionamento nos fantasmas familiares (noção entendida pela psicanálise como fantasias inconscientes).

A noção de Transgeracionalidade se distingue da noção de Intergeracionalidade, que seria o viés positivo e adaptativo, estando relacionada às vivências elaboradas, fantasias, crenças, valores, princípios e identificações do sistema familiar.

Transgeracionalidade e Intergeracionalidade constituem então padrões que interagem e se complementam de forma mais ou menos consciente nas dinâmicas familiares conforme a situação. Sendo que a Transgeracionalidade representa o pólo que em Gestalt-terapia poderíamos descrever como o pólo das situações interrompidas ou das Gestalt que não se fecharam na história da família e que emergem nas gerações futuras como situações que pedem fechamento. Um fechamento que não diz respeito a história de um membro da família, mas sim há duas ou mais gerações deste sistema.

O pertencimento ao campo familiar pode ser descrito também como sustentado pode uma rede de forças que configuram “lealdades invisíveis” como descritas por Boszormenyi-Nagy, um psiquiatra e psicoterapeuta sistêmico que estuda os sistemas familiares e grupos.

Para Boszormenyi-Nagy e Spark, (2008) o componente da obrigação ética na lealdade está ligada, em primeiro lugar, ao despertar do sentido do dever, da imparcialidade e da justiça nos membros do sistema. O autor destaca que a lealdade se mostra como uma força ativa de reciprocidade dialógica ao sistema de origem, um fundo de pertencimento.

A dialogicidade deste processo implica que a lealdade entre os membros de um sistema familiar qualquer retorna para cada um como reconhecimento existencial. Por exemplo: através do olhar que pai ou mãe trocam com um filho ou filha, há um ver e visto, e há uma ação simultânea de pertencimento, reconhecimento e posicionamento existencial.

Referências

BOSZORMENYI-NAGY, Ivan; SPARK M. Geraldine. Lealtades invisibles. Reciprocidade em terapia familiar intergeracional. 1a. ed. 3a reimpressão. Tradução In s Pardal. Buenos Aires: Amorrortu, 2008.

PADILHA, Carolina R. M.; BARBIERI, Val ria. Transmissão psíquica Transgeracional: uma revisão da literatura. Revista Tempo Psicanalítico. Rio de Janeiro. Vol. 52.1 Pg. 243-270, 2020.

PERLS, F.; HEFFERLINE, R; GOODMAN, P. Gestalt-terapia. Tradução Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.

ROBINE, Jean-Marie. O Self Desdobrado perspectiva de campo em Gestalt-terapia. Tradução Sonia Augusto. São Paulo: Summus, 2006.

ROBINE, Jean-Marie. Curso Avançado de Gestalt-terapia com Jean-Marie Robine. Comunicação oral. Joinville: maio-2016.

RODRIGUES, Hugo Elidio. Teoria de Campo de Kurt Levin e a Gestalt-terapia. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UERJ-PPGPS, 2005.

YONTEF, Gary M. Processo, Diálogo e Awareness - Ensaios em Gestalt-terapia. Tradução Eli Stern. São Paulo: Summus, 1998.